A cena era perfeita. Uma chola, trajada provavelmente como suas bisavós, trisavós e tetravós se trajavam, com seus tecidos coloridos e um aguayo enorme carregando algo pesado nas costas, tocava um rebanho de ovelhas para o alto do morro de vegetação rasteira. Lá embaixo, a azulíssima água do Lago Titicaca. Ao fundo, bem distante, os nevados ganhavam uma coloração ainda mais brilhante, com a proximidade do pôr-do-sol que tornava a luz do dia cada vez mais alaranjada. A foto seria quase uma versão pré-colombiana da Paisagem com a queda de Ícaro, do Bruegel, com nenhum indício de se tratar do século vinte e um. Saquei o celular e enfoquei. Mas na hora de disparar, declinei.
Olhamos bem para aquela cena, com o intuito de nunca a esquecer, e comentamos alguma coisa sobre a pureza e a perenidade daquilo. Era 2025, mas poderia ser 1825, 1532, 476 a.C. Aquela camponesa, aquelas ovelhas, aquela paisagem eram atemporais porque sempre estiveram ali. Nós só estávamos de passagem, não precisávamos roubar a aura daquilo a troco de alguns coraçõezinhos no Instagram. Milhares de outros turistas e visitantes devem ter registrado, tal qual tantos outros registros invasivos fizemos durante a viagem. Mas, daquela vez, talvez com um feixe de lembrança de um texto da Gaía Passarelli, bastou-nos olhar sem fotografar a subida do morro daquela pastora e seu rebanho, para voltar a nossa atenção ao caminho e seguirmos até onde queríamos antes que a luz do sol desaparecesse.
Mentem constantemente sobre o tempo de deslocamento até a Isla del Sol, no Lago Titicaca. Não se planeje para uma viagem de menos de sete horas caso você vá ao lado sul, ou de oito horas para o lado norte. Saímos do hotel às sete e meia da manhã; pegamos o primeiro minibus até o “terminal” do Cemitério de La Paz, que nada mais é que uma rua onde param ônibus e vans; entramos no ônibus das oito, que saiu pontualmente. Éramos os únicos estrangeiros. A simplicidade do veículo, sem banheiro, sequer cinto de segurança, era paga pelos vinte e cinco bolivianos da passagem. As duas primeiras horas de viagem são para vencer as ladeiras de La Paz, o trânsito indefectível de El Alto e a retilineidade infinita da Ruta Nacional 2, paralela à cadeia de nevados da Cordilheira Real. Quando surgem as primeiras margens do Lago, com seu azul encantador, começam as sinuosidades, os aclives e declives.
A parada no meio do caminho para atravessar o Canal de Tiquina, dura no mínimo meia hora. O ônibus vai numa balsa, nós vamos num barco ao custo de dois bolivianos e meio. Nada é industrial; a balsa pesadíssima é centralizada no cais pelas mãos dos barqueiros; o motor do barco funciona como uma máquina de caldo de cana. Atravessar o estreito é rápido, mas o vento faz o barco chacoalhar mais do que gostaríamos. O sol é sempre onipresente, queimando a pele apesar do frio sempre rasgante do altiplano. A hora final é preenchida por um sobe-e-desce infinito através da Península de Copacabana, com paisagens estonteantes de campos comunais, onde não se veem cercas nem delimitações claras do que é território boliviano e território peruano. Na vegetação rasteira veem-se caminhos humanos que lembram cenas dos filmes do Kiarostami. O lago é onipresente e suas visões, de ângulos e alturas diferentes, sempre tiram o fôlego. A chegada à hiperturística, hipermovimentada e hipertradicional cidade de Copacabana, uma mistura de Trindade com Aparecida do Norte, é como completar um calvário; sem saber que ainda há outros, a depender do caminho.
Os barcos saem de Copacabana para a Isla del Sol em três horários distintos. O último sai às 13h30. Como chegamos depois do meio-dia, mal tivemos tempo de almoçar e explorar a cidade; e se não tivéssemos pego aquele ônibus das oito, não conseguiríamos chegar à ilha naquele dia. Na embarcação, ao contrário do ônibus, não haviam bolivianos. Estrangeiros, com diferentes portes de bagagem e roupas que denunciavam o nível de suas aventuras andinas, conversavam em distintos idiomas. O barco era barulhento, o cheiro de combustível intoxicante, e sua velocidade desesperadoramente lenta. Apesar da beleza da água, da costa, da cordilheira no horizonte, os minutos demoravam a passar. Em uma hora e meia, chegamos ao lado sul. Mais meia hora chegamos ao lado norte, onde tínhamos reservado um pernoite. Já era quase quatro horas da tarde, completávamos as oito horas de viagem que ninguém tinha contado, quando aportamos. Vinte minutos de trilha, subindo um morro da praia até a hospedagem, arrebatadora, de uma família endêmica da ilha para largarmos as mochilas, nos hidratarmos e dar uma respirada.
Pergunto a Oscar, proprietário da hospedagem, se dá tempo de chegar ao labirinto inca antes de a luz do dia se apagar. Ele me informa que sim. Teríamos que acelerar o passo, um esforço hercúleo se tratando de quase quatro mil metros de altitude. O sol se punha às seis e meia, havia duas horas para chegarmos lá e voltarmos com segurança ao quarto. Segundo Oscar, era uma caminhada de vinte e cinco minutos; assim como o tempo de viagem para a ilha dito anteriormente para nós lá em La Paz, uma mentira.
Iniciamos a caminhada que seria mesclada por passos acelerados, passos vagarosos, pausas para respirar e tomar água, e pausas para fotos. Quando se está em um cenário deslumbrante, chega-se a perder o foco de onde despejar mais atenção. Mas entre o azul cristalino, o horizonte nevado, as formações rochosas únicas e a vegetação iluminada pelo sol poente, uma coisa se destacou em nossa caminhada: as curvas de nível. Não resquícios arqueológicos de outros tempos, mas a formação agrícola milenar ali, usada, em nossa frente, por lavradores. Lemos muito na vida sobre como essa forma de agricultura transformou o medievo europeu, garantiu a longevidade infinita dos impérios asiáticos e estruturou a pujança do império inca nos Andes. Agora estávamos não só defronte à formação, mas vendo ela em uso, com homens passando o arado. Foi nessa hora que o pequeno rebanho de ovelhas passou em nossa frente, tocado por uma mulher idosa, formando a foto perfeita nunca tirada. Seguimos.
O horário estava avançado quando alcançamos a “roca sagrada” inca e a mesa de sacrifícios. Diferente de qualquer artefato arqueológico protegido pela Unesco, a mesa de pedra estava inadvertida, sem gradil ou qualquer separação e, mais surpreendente ainda, recém utilizada. Havia uma rosa, marcas de fogueira recente e ossos que supomos ser de lhama. O ano novo andino havia sido há duas semanas e o uso daquela estrutura pesada disposta há algum século distante, era outro indício da perenidade sagrada daquele local. Poucos metros adiante, quando o sol já ameaçava desaparecer atrás do morro à frente, chegamos ao enorme labirinto de pedras.
Conta-se que o Império Inca nasceu nesta ilha. Arqueólogos divergem da informação. O que se sabe é que ela foi habitada há milênios pela farta possibilidade de cultivo agrícola. Após a seca que diminuiu o tamanho do lago Titicaca e causou o desaparecimento da civilização de Tiwuanaku, os incas iniciaram sua expansão a partir daquela região, conquistando todo o entorno do lago e ampliando a dominação rumo a Cuzco, que seria sua capital. O fato é que a ilha teve um valor sagrado para os incas, por isso seu nome e suas principais funções, de adoração a Inti, o deus mais importante dessa cultura, representado pelo Sol. A mesa era um indício. O labirinto onde estávamos, uma chinkana, era outro. Morada dos sacerdotes ou local estocagem de mantimentos, a chinkana impressiona pela estrutura e pela vista, mais uma vez arrebatadora, da praia de água cristalina.
Todas as venturas daquele dia estiveram ligadas ao tempo, como se tivéssemos nos planejado rigorosamente. Mero acaso, ou mero mister da ilha de Inti: mal sabíamos as durações reais até chegarmos ali. Por isso, o sentimento de mistério ao conseguimos tocar, atravessar, brincar e fotografar toda a chinkana inca ainda com a luz plena do sol. Já se escondendo atrás do morro, tornou aquela morada sagrada ainda mais bonita, com a luz da hora dorada. Vimos os últimos raios laranjas desaparecerem do labirinto anunciando o descanso de Inti, mais um entre milhões de vezes que deus Sol deixou de iluminar aquela estrutura. Mas estávamos a sós ali, então supomos que havia algo de especial naquele fenômeno tão banal da natureza.
Cumprida a missão, precisávamos retornar à hospedagem antes que a luz desaparecesse, incorrendo o risco de perder a trilha no meio da escuridão. Iniciamos o retorno. Mas a alguns metros da roca sagrada, percebemos a figura solitária de uma mulher, roupa de viajante, sentada sobre o alto de um cerro sem nome, cuja vista dava para o ponto onde o sol se punha sobre o lago. Decidimos ir até lá. Sentamos e permanecemos no profundo e respeitoso silêncio em que a moça se concentrava.
Minha companheira e eu devemos ter assistido a mais de cinquenta vídeos de viagem para a Bolívia. Um deles nos chamou a atenção em especial. Um casal visitava a Isla del Sol, com o intuito de fazer um bate e volta. Mas a menina, tocada pela “ancestralidade” da ilha desatou a chorar e resolveu ficar mais uma noite ali. A cena toda dos youtubers se filmando aos prantos e, principalmente a narrativa rasa e cafona, causou-nos uma reação da crise de riso e constrangimento. Não conseguimos assistir o vídeo na íntegra. Agora, ali estávamos, alguns meses depois, na mesma ilha prestes a ver um pôr do sol.
Sentados, no alto daquele cerro, olhando o sol e desviando o olhar quando sua luz machucava a retina, as lágrimas começaram a rolar. Sei lá se foi obra da ancestralidade, se vingança do casal vlogueiro, se fruto do cansaço, se sentimento de mérito pela empreitada, se efeito da altitude, do frio ou, simplesmente, da beleza da cena. Havia visto inúmeros pores-do-sol inesquecíveis, em paisagens urbanas e idílicas; em lugares badalados e desérticos; mas não fazia ideia da capacidade de emocionar que um anoitecer tem. Pois ali, o deitar de Inti sobre as águas do Titicaca me fizeram chorar copiosamente. Olhei discretamente para minha companheira e ela também chorava. E, mais uma vez, nenhuma fotografia seria capaz de captar aquele instante.
Que delicia foi viajar com vocês, nesse texto!! Ver e ouvir as paisagens vividas, ao longo do caminho!! Mais detalhes do qualquer foto poderia registrar me apresentaram pessoas e lugares que eu não visitei, mas conheci através de vocês!! Precisamos de um encontro, face a face, rs...porque quero ver nos olhos, como que na tela de um cinema, tudo que suas memórias registraram. Beijo grande meus amigos e obrigada por me levarem nessa viagem com vocês!! Até breve!!